Saúde mental importa.
por Talissa Monteiro – Jornalista e Ex Aluna IEPR
O Enem 2020 aconteceu no último final de semana em meio a várias polêmicas. Adiado no ano passado e, mesmo com o pedido de muitos estudantes para que a prova não fosse realizada agora, o Ministério da Educação se manteve irredutível. Diante de uma pandemia, as questões levantadas foram muitas, como o risco de contaminação em uma prova longa aplicada em salas, muitas vezes, sem ventilação ideal; a disparidade entre estudantes de diferentes classes sociais (alguns estudaram na modalidade online durante 2020 e outros nem acesso à internet têm); além do caos que alguns estados, como Manaus, vivem no momento. Neste cenário, a abstenção foi a maior da história: mais da metade dos candidatos que haviam pago a inscrição não compareceram.
No entanto, num ano marcado pelo isolamento social, o Enem trouxe uma proposta pertinente como tema de redação: o estigma da saúde mental na sociedade brasileira. No Brasil, a discussão por um direcionamento mais humano para esse tipo de tratamento é recente. A Lei de Reforma Psiquiátrica, por exemplo, que discute, entre outras coisas, a existência dos manicômios no país foi aprovada somente há 15 anos. Um dos locais desse tipo mais polêmicos no país, o Hospital Colônia de Barbacena, chegou a ser comparado com um campo de concentração nazista por jornalistas e psiquiatras que visitaram o local. No entanto, ficou aberto de 1903 a 1980, com 60 mil mortes na conta .
De herança desse histórico cruel, ficou a conotação negativa com que os brasileiros enxergam o cuidado com as doenças mentais. Para muitas pessoas, ainda é uma vergonha dizer que enfrentam uma depressão, ansiedade, bipolaridade e que frequentam o psicólogo ou psiquiatra. Apesar deste cenário ter mudado bastante nos últimos anos e vermos as pessoas falando mais sobre o assunto, estereótipos perigosos ainda são propagados: frescura, preguiça, ingratidão são julgamentos frequentemente atribuídos à quem está passando por um período difícil.
A questão é ainda mais séria quando olhamos para aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade social. Para os que lutam diariamente pela sobrevivência, literalmente ou pela manutenção da dignidade, saúde mental é artigo de luxo. Isso não impede, entretanto, que essas pessoas sofram com transtornos mentais, pelo contrário, eles são agravados pelas condições sociais em que vivem. Por isso, o atendimento gratuito no SUS e a necessidade de políticas públicas que ampliem esse amparo é fundamental.
Mas para entender tal estigma, ainda que superficialmente pelo espaço que temos, é preciso olhar para o nosso modelo social. Qualquer coisa que ameace a produção incessante do modelo econômico atual é subestimada e não recebe a devida atenção. Pense só, uma doença física que, muitas vezes, pode ser resolvida mais rapidamente é encarada com seriedade. Já uma questão de saúde mental, a qual demanda tempo e atenção maiores é vista como um problema de segunda ordem, o qual podemos ir “empurrando com a barriga”. Mas, em algum momento, corpo e mente cobram o preço e uma angústia mal olhada ou uma rotina estressante se transformam em crise de pânico, síndrome de burnout ou depressão.
A humanidade passou os últimos anos aperfeiçoando sua tecnologia, evoluindo na ciência mecanicista, chegando a lugares jamais imaginados. Os novos tempos pedem que, amparados pela técnica, olhemos agora para as nossas subjetividades, como o cuidado com o outro e com a gente mesmo. É tempo de pensar se estamos caminhando para o mundo que queremos construir. Chegaremos lá prezando apenas as nossas conquistas tecnológicas? E o nosso bem-estar, a cooperação, a empatia? A forma como olhamos para a saúde mental está diretamente ligada à maneira como olhamos para aquilo que nos torna, de fato, humanos. A mente, assim como a natureza, os sentimentos, as relações, foge à nossa ilusão de controle. É, por vezes, imprevisível e volátil. Tentamos, nos últimos séculos, de tudo para fugir dessa incerteza. Mas vem um vírus e mostra o que já sabíamos: a humanidade intrínseca a cada um de nós foge à qualquer manual.